A população paulista, tanto da capital quanto de várias outras cidades do estado, está sofrendo desde o ano passado algo incomum para os padrões da terra da garoa: uma crise hídrica. As primeiras notícias de seca por conta da falta de chuva começaram a figurar no primeiro semestre de 2014. Em maio, um relatório do Instituto de Astronomia e Geofísica da USP anunciava a pior temporada seca desde 1969 e o ano mais seco desde a criação do Sistema Cantareira, em 1973.

De maio pra cá, a crise hídrica ganhou corpo, virou a crise de abastecimento da região Sudeste e a falta d’água acabou se tornando arma política na campanha eleitoral. O que não abalou a reeleição do governador Geraldo Alckmin (PSDB) já no primeiro turno, com 57% dos votos válidos. A seca virou motivo de chacota na internet e um dos temas mais discutidos de 2014 e de 2015 no país.

O risco de racionamento tem preocupado tanto a população quanto as empresas que se instalavam na região. Empresas como a Ambev, responsável pelas principais marcas de cerveja no Brasil, e até a Coca Cola, cuja produção necessita de milhares de litros de água por dia, direcionaram a sua produção principal para outras regiões. A Coca, desde 2013, quando a ameaça começou a se agravar, investiu em um parque fabril na cidade de Ponta Grossa, no Paraná. Um investimento de 580 milhões, segundo a prefeitura da cidade. Parte dos investimentos da marca já estão funcionando na nova instalação.

Os porquês da crise hídrica

A diferença entre uma crise e um imprevisto não está nos resultados de um ou de outro. A escassez de água pode muito bem ser vista como fruto de alguma dessas situações. A diferença entre os termos está nas causas. Imprevistos têm, como definição básica e óbvia, o fato de não permitirem antecipações. Acontecem sem aviso, simplesmente. As crises, diferentemente, são anunciadas, calculadas, especuladas.

Em 2004, no primeiro mandato de Geraldo Alckmin no governo de São Paulo e na gestão de Marta Suplicy, na capital, o contrato com a Sabesp foi renovado. Na época, o jornal O Estado de São Paulo fez uma reportagem levantando a possibilidade do sistema de reservatórios não ser o suficiente para dar conta da demanda. A companhia de águas é responsável pelo abastecimento de mais da metade dos municípios do estado.

O sistema Cantareira de abastecimento é responsável por 55% da área metropolitana da cidade de São Paulo. Abastecido por seis reservatórios, foi criado na década de 1970 por conta da alta demanda gerada pelo crescimento populacional, quem de 1940 pra cá mais que dobrou.

Cantareira é também um recurso em épocas de adversidade. O chamado “volume morto” é um sistema inaugurado em maio de 2014, que capta a água que fica abaixo das comportas do reservatório para utilização em períodos secos. A medida foi uma boa opção para a metade do ano passado, mas os críticos do uso dessa reserva o veem como mais uma medida paliativa, um remendo. Seria necessário, na verdade, uma reestruturação. O que impede isso é que, como qualquer empresa, a Sabesp opera visando lucro para os seus acionistas e os custos para qualquer iniciativa mais definitiva encurtariam o caixa da companhia.

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A falta de chuvas atípica e o crescimento populacional devem ser levados em conta, mas a empresa e a gestão governamental têm um papel chave nessa crise hídrica. A falta de investimento há mais de uma década está diretamente relacionada ao cenário atual. É importante ressaltar que desde o século XIX, São Paulo tem uma base de dados baseada em análises do sistema de abastecimento que permite, através de cálculos e projeções, prever períodos chuvosos ou de estiagem a longuíssimo prazo.

Racionamento

Dentre as medidas emergenciais planejadas pelo governo paulista está o rodízio de abastecimento na capital. A ideia, discutida durante o pior período de seca, no início deste ano, é que o corte de abastecimento ocorra por 4 dias alternado com 2 dias de distribuição normal.

No anúncio oficial do governo do estado foi estabelecido um limite mínimo para os reservatórios da Cantareira. Caso a água fique abaixo desse nível, o rodízio passa a entrar em atividade. A boa notícia é que choveu bastante na última quinzena.

Oficialmente ninguém se posicionou sobre a alta do volume de água nas reservas que, mesmo com esse aumento, ainda estão na zona de risco.

O Abastecimento

O sistemas de captação de água são muito semelhantes. Normalmente eles funcionam da seguinte maneira: a água é coletada de uma reserva natural (que pode ser um lençol freático, um aquífero, um rio ou um lago subterrâneo), transportada por uma adutora, purificada por meio de vários processos e transmitida para o consumo.

O Brasil é o país que mais contém bacias hidrográficas: 12% de toda a água doce do mundo está aqui. Os problemas, portanto, vêm de duas frentes principais: a falta de investimento em mais estruturas de distribuição de água por parte das companhias, o que gera um alto custo de transmissão; e o desperdício.

O que a posição oficial ignora nesse aspecto é que o consumidor doméstico não é o maior responsável pelo sistema não dar conta. A manutenção precária faz com que 25% da água captada pela Sabesp seja perdida antes de atingir as caixas da água que abastecem as cidades. Os relatórios do início do ano passado da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária (Abes) apontaram os vazamentos na rede como o principal responsável por essas perdas: cerca de 60%. O restante é fruto do roubo por meio dos chamados “gatos” clandestinos.

Além das perdas na rede, quando a água chega a seu destino, quem tem a maior responsabilidade pelos desperdícios são as grandes indústrias e o agronegócio. Mais de 70% da água produzida no Brasil é utilizada em irrigação de lavouras e os processos ultrapassados fazem com que se gaste muito mais do que a quantidade necessária.

Se a chuva continuar por um período aceitável, essa talvez seja a melhor oportunidade que o governo de São Paulo tenha para um investimento pesado em reestruturação que possa evitar uma nova crise hídrica.

Alternativas

A importância econômica da região Sudeste transformou a seca em assunto nacional na mídia, mas há muito mais tempo, o Nordeste brasileiro sofrem com a estiagem, que é predominante no clima típico da região.

O Ministério de Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDE), do governo federal, financia desde 2003 a construção de cisternas nas regiões mais pobres e afetadas pela seca em pequenas comunidades do norte e nordeste.

A captação é feita pela água da chuva, que escorre por calhas instaladas nas casas juntamente da cisterna com capacidade de 16 mil litros. Depois da primeira chuva que é utilizada como limpeza e preparação dos filtros, toda a água que cai termina no reservatório. O investimento de R$ 2,8 milhões permitiu a diminuição drástica do uso de água dos escassos açudes e dos poços artesianos, que era vendida de casa em casa.

Uma cisterna dessas, que é considerada pequena, pode garantir o consumo de uma família de cinco pessoas durante oito meses. O investimento, que gira em torno de R$ 1,6 mil, é bancado pelo MDE.

No Rio Grande do Norte, uma medida sustentável ecologicamente e economicamente utiliza estações básicas de tratamento para o chamado reuso da água de esgoto.

O projeto “Palmas para Santana”, no município de Santana do Seridó (RN), transforma a maior parte dos 258 mil litros de água de esgoto gerado pela população de 2.526 habitantes em água limpa, que é utilizada nos processos de irrigação. Ideias semelhantes da iniciativa privada podem se utilizar de metodologias semelhantes para utilizar a água limpa, mas não potável, em processos industriais.

Iniciativas como essas são maneiras comprovadas de como enfrentar problemas relacionados aos sistemas de abastecimento e uma crise hídrica. A sustentabilidade, muitas vezes ignorada e vista apenas como política social, também deve ser encarada como investimento econômico de longo prazo. O retorno desse tipo de projeto, quando comparado à situação atual da Sabesp, é uma comprovação disso.

A seca e a energia elétrica

A estiagem no país tem afetado não só o abastecimento de água e causa a crise hídrica. Uma das consequências mais preocupantes é o impacto na produção energética brasileira. Mais de 80% da eletricidade gerada no país é proveniente de hidrelétricas e os reservatórios que abastecem tais usinas estão com níveis irrisórios por conta da seca. No Sul, Sudeste e Centro Oeste o nível médio está abaixo de 18%.

O impacto foi sentido na tarde do dia 19 de janeiro deste ano, quando um apagão atingiu 10 estados brasileiros e o Distrito Federal. O ocorrido foi um desligamento de emergência no sistema que abastecia esta parte do país.

Desde então o ministério de Minas e Energia (MME) vem estudando medidas de economia para que isso não volte a ocorrer. Como medida emergencial, o país recorreu a um empréstimo de energia da Argentina. A parceria entre os dois países já existe há algum tempo e o contrário também pode ocorrer.

Uma semana depois, no dia 27 de janeiro, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) exportou 200 megawatts para os nossos vizinhos.

O aumento de mais de 50% nas contas de luz também pode ser relacionado com a situação da nossa distribuição de eletricidade, mas não só com isso. Os aumentos estão em parte ligados à renovação de algumas concessões e contratos com as distribuidoras. O sistema de bandeiras tarifárias também tem papel chave no que o consumidor final paga na conta.

Uma das possibilidades levantadas pelo MME foi a da extensão do período do horário de verão. Mas a ideia não foi para frente porque a análise concluiu que o impacto de economia seria praticamente nulo.

Potencial eólico

Em meio a essa crise hídrica, há o fato de que o Brasil é um dos países com maior potencial eólico do mundo, e nos últimos anos houve investimento pesado na geração de energia pelos ventos, que é limpa, renovável e independe de condições climáticas cíclicas, como épocas de chuva.

Foi a fonte de energia que mais cresceu no Brasil: o país tem 195 parques eólicos em operação atualmente. O aumento da capacidade cresceu 127% em 2014, o que colocou o país na 11ª posição entre os países com maior capacidade instalada no mundo.

No entanto, no início do ano passado, uma reportagem do Jornal Nacional, da Rede Globo, revelou que 36 dos parques eólicos instalados estavam sem linhas de transmissão, ou seja, gerando energia, mas não transmitindo.

Termoelétricas e alternativas

Na época, o país sofria com uma estiagem semelhante e precisou aumentar a produção das termoelétricas da região Sul. A produção por gás, carvão e óleo é autorizada pelo governo em períodos com menos chuvas. Apesar disso, a geração termoelétrica é mais poluente e mais custosa que outros métodos.

A ativação dessas usinas no ano passado ocorreu quase que no mesmo momento do anúncio do governo sobre a redução das tarifas de energia elétrica. Mas com o custo de produção maior, o Tesouro teve que bancar a diferença.

Agora o governo resolveu repassar às tarifas aquilo que a União estava pagando e, por isso, o aumento recentemente aprovado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) está pesando tanto no bolso dos brasileiros.

A mensagem que fica com essa crise hídrica é a necessidade de preservação da água com boas condições de uso. A falta dela afeta a sociedade em vários aspectos: políticos, econômicos e, principalmente, sociais.

Foto: Diogo Moreira/ A2 FOTOGRAFIA

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