O apelo dramático à intervenção estatal, feito por instituições e publicações ideologicamente alinhadas com o pensamento liberal-conservador, como The Economist, é sintomático. Não é só indicador preocupante da extensão da atual crise e das incertezas sobre seu impacto e possíveis desdobramentos na esfera da economia real; é também, e principalmente, o reconhecimento explícito da incapacidade de auto-regulação do mercado financeiro.Crises e flutuações nos preços dos ativos financeiros não são fenômenos novos na história do capitalismo contemporâneo. Pelo contrário. Os preços das ações na Inglaterra e nos Estados Unidos, por exemplo, variaram amplamente em diversos períodos ao longo dos 100 anos que precederam o grande crash de 1929, provocando inúmeros episódios de pânico bancário e, em muitos casos, contrações pronunciadas no nível de atividade econômica.

O período do pós-guerra é igualmente rico em fenômenos desse tipo, tanto nos países em desenvolvimento quanto no núcleo da economia capitalista mundial. Esses fenômenos se intensificam a partir da ruptura, por parte dos Estados Unidos, do acordo de Bretton Woods, em 1971, e adquirem novos matizes nas décadas subseqüentes, com a liberalização dos movimentos internacionais de capital e a expansão e integração dos mercados financeiros à escala global.

Nos últimos vinte anos a economia mundial foi abalada por pelo menos treze episódios de instabilidade financeira de significação, cinco dos quais com epicentro nos Estados Unidos, incluindo a atual crise. Esta se limitou, inicialmente, ao setor imobiliário norte-americano, cujo boom de valorização a partir de 2001 serviu como incubadora do processo especulativo com as hipotecas imobiliárias de segunda linha (subprime), transformando-se progressivamente em crise global de crédito.

A securitização de empréstimos de baixa qualidade, praticada pelos bancos norte-americanos como estratégia de diluição e transferência de riscos, produziu um movimento capilar de contaminação do sistema financeiro internacional, que afetou duramente bancos nos Estados Unidos e algumas instituições européias.

À diferença de outros eventos similares, neste caso a intervenção estatal foi intensa e decisiva para, até agora, conter o alastramento incontrolável da crise.

O FED, por exemplo, em uma demonstração sem precedentes de ousadia keynesiana, fez sucessivos cortes dos juros que, em menos de seis meses, derrubaram a taxa básica em mais de 57%, reduzindo-a para os atuais 2,25% anuais, diminuindo também, quase na mesma proporção, a taxa de redescontos; e ampliou os limites de empréstimos e injetou US$ 400 bilhões, aproximadamente a metade das suas reservas, no sistema financeiro local. Paralelamente, o governo norte- americano dotou uma série de medidas de alivio aos mutuários e instituições em dificuldades – incluindo o financiamento da compra do banco Bearns pelo grupo Morgan e a troca de hipotecas podres por títulos do Tesouro norte-americano; anunciou a devolução de uma parte dos impostos a todas as famílias visando estimular a demanda interna; e elaborou um pacote normas de regulação do sistema financeiro, reforçando a área de fiscalização.

Bancos centrais da Europa e do Japão intervieram também fortemente para evitar o empoçamento da liquidez e a quebra de algumas instituições financeiras.

Mas além de expor as fragilidades do atual ordenamento financeiro mundial e a inconsistência das teorias de auto-regulação do mercado que lhe dão suporte, a atual crise pode ter outros desdobramentos relevantes. Começa a generalizar-se a percepção da necessidade de avançar no controle social do sistema financeiro e de reduzir a instabilidade e desequilíbrios derivados da livre movimentação de capitais especulativos.

Propostas vêm sendo encaminhadas em fóruns internacionais abrangem um amplo espectro de questões críticas, como o realinhamento das taxas de câmbio, a reforma do sistema internacional de reservas – evoluindo para um padrão multi-divisa – e a criação de mecanismos multilaterais que assegurem liquidez aos países em desenvolvimento.

O fato da atual crise embutir a possibilidade de acentuação do movimento de desvalorização do dólar introduz complicadores adicionais nesse processo. Vale recordar que os Estados Unidos têm usado recorrentemente sua condição de emissor da moeda-padrão mundial, alternando políticas de valorização e desvalorização da mesma, como instrumento de preservação e ampliação do seu poder político e econômico a escala mundial. Não há porque imaginar que dessa vez seria diferente.

De todo modo, não deixa de ser interessante verificar que, ao contrário do que tem sido insistentemente recomendado aos países em desenvolvimento, de toda a parte surge a pressão para que os Estados intervenham na crise e adotem políticas para corrigir os desequilíbrios do mercado. Figuras emblemáticas como George Soros se atrevem até a criticar a inação das autoridades monetárias norte-americanas que, imbuídas da “ideologia do mercado auto-regulador” deixaram que a crise se conformasse. Após décadas de predomínio do pensamento liberal-conservador, parece que o grande economista falecido, aquele que governa os vivos em tempos de graves crises, é mesmo John Maynard Keynes.

(Gazeta Mercantil/Caderno A – Pág. 17)

(Aloizio Mercadante – Senador da República pelo PT-SP, economista e professor licenciado)

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